O mexicano Alejandro Reyes, que acaba de lançar o livro Vozes dos Porões, fala sobre a literatura periférica do Brasil
O autor pesquisou a literatura periférica brasileira em seu doutorado.
(Crédito: Divulgação)
Na última década, a produção literária da periferia brasileira
ultrapassou barreiras, atingindo novos públicos, chegando ao mercado e
às universidades, extrapolando até fronteiras nacionais. O movimento
chamou a atenção de Alejandro Reyes, escritor, tradutor e jornalista
nascido no México. Depois de morar vários anos nos Estados Unidos e na
França, Alejandro se mudou para o Brasil em 1995, onde mergulhou na
cultura urbana produzida e vivenciada nas favelas e passou a estudar o
que chama de “fenômeno da literatura periférica no Brasil”.
Assim nasceu o recém-lançado
Vozes dos Porões,
livro em que Alejandro analisa a expansão desse movimento literário,
suas particularidades e suas dimensões sociais e políticas. A obra é
fruto de sua pesquisa de doutorado realizada na Universidade da
Califórnia, em Berkeley, mas Alejandro avisa, logo na introdução, que as
inquietações que o moveram na empreitada foram mais as do ativista e do
escritor que as do acadêmico ou intelectual.
Alejandro Reyes é autor de
Vidas de rua e
Contos Mexicanos, coletâneos de contos, e do romance
A rainha do Cine Roma,
finalista do prêmio Leya 2008 e ganhador do prêmio mexicano Lipp 2012
pela versão em espanhol. Seu romance de estreia foi traduzido no Brasil,
em Portugal, no México e na França. Atualmente o autor vive em Chiapas,
no México.
Vozes dos Porões integra a coleção Tramas Urbanas, da editora Aeroplano.
No livro Vozes dos Porões, você escreve que o fenômeno da
literatura periférica é forte no Brasil, mas você se foca bastante nos
escritores de São Paulo. Como é essa cena no Rio?
O fenômeno começou de fato a adquirir características de “movimento”
(literário, político e social) em São Paulo, sobretudo com a criação dos
saraus do Binho e da
Cooperifa
e a subsequente proliferação dos saraus por todas as periferias da
cidade, e com a publicação dos números da revista Caros Amigos dedicados
à “literatura marginal”, organizados por Ferréz (foram três números da
publicação editados em 2001, 2002 e 2004, que reuniram 80 textos de 48
autores oriundos das periferias do país). Mas o grande precedente que
deu visibilidade à literatura periférica na década de 1990 foi o
romance
Cidade de Deus, de Paulo Lins, justamente no
Rio de Janeiro. E teve também o MV Bill e Celso Athayde, com os vários
produtos culturais do projeto
Falcão, em meados da
década de 2000. De grande importância hoje são os muitos saraus
literários que vêm surgindo há alguns anos no Rio, vários deles na
Baixada Fluminense, alguns inspirados nos saraus que deram origem ao
movimento em São Paulo e outros, significativamente, inspirados no
trabalho de Nelson Maca e o coletivo Blackitude, em Salvador, com um
viés muito mais afrobrasileiro. O último evento da nossa recente turnê
com
Vozes dos Porões foi justamente no fantástico Sarau da
APAFunk, na Cinelândia, na frente da ocupação Manoel Congo.
A que você atribui a “profusão inusitada de obras de autores oriundos das periferias urbanas” que se observa na última década?
Acho que tem vários elementos. Primeiro, a crise social brasileira
iniciada no período da “democratização” e aprofundada na década de 1990,
que criou um abismo inédito entre as classes sociais, devido às
políticas neoliberais, à polarização da riqueza, a “democratização” das
drogas e o aumento da violência. Essa crise trouxe, por um lado, uma
reação de intolerância por parte das classes privilegiadas e o que
alguns pensadores têm chamado de “cultura do extermínio” contra as
populações pobres, consideradas “perigosas”. Por outro lado, essa
situação resultou numa crise na mediação cultural, até então feita por
uma classe média letrada. Esse vácuo na mediação cultural vem sendo
retomado, agora, pelos produtores culturais periféricos, não mais com o
discurso da negociação conciliadora numa suposta democracia racial, mas,
ao contrário, visibilizando e escancarando os conflitos presentes na
sociedade brasileira. Nesse contexto, um grande impulso foi o sucesso
mercadológico de obras como
Cidade de Deus, o filme
Carandiru e
toda
a produção cultural em volta do massacre. Finalmente, o grande impulso
foi o surgimento dos saraus literários, que serviram como espaços de
conscientização e de formação política e literatura para muitos poetas e
escritores.
Você insere essa produção literária nesse movimento cultural e
político mais amplo que é o dos saraus literários, que vem se
expandindo nas periferias do país desde 2000. Poderia falar um pouco
sobre esse movimento?
São espaços, geralmente bares, de encontro entre poetas, escritores,
ativistas e amantes da palavra, onde se recita poesia, se discutem temas
culturais e políticos, se lançam livros, pela e para a população
periférica. Espaços de formação não só poética e literária, mas
política, de sujeitos individuais e coletivos. Hoje há uma grande
variedade de formas e estilos, uns voltados mais para a poesia, outros
para o debate, alguns com um perfil evidentemente periférico e outros
com um viés muito mais afrobrasileiro, com a reivindicação da negritude
como eixo de luta (a exemplo do Sarau Bem Black na Bahia), e inclusive
outros com uma perspectiva mais global, latinoamericana, como o Sarau do
Binho. É interessante notar que o fenômeno é muito dinâmico, não só
pelo surgimento de cada vez mais saraus, mas do constante questionamento
interno sobre o papel formador desses espaços e as ações políticas e
sociais para além do sarau em si. Nos saraus da Brasa e do Elo da
Corrente, na zona norte de São Paulo, por exemplo, o lançamento de
Vozes dos Porões serviu
como ponto de partida para debates muito profundos sobre autonomia,
formação política, o papel problemático da ação das ONGs e do Estado,
etc.
Cada vez essa produção literária tem mais espaço no mercado
editorial. Como foi esse processo de incorporação dessa escrita ao
mercado? Poderia citar alguns exemplos?
Como eu disse, a obra que abriu essa porta foi
Cidade de Deus,
seguida pelos números de Literatura Marginal na revista Caros Amigos.
Na primeira metade da década de 2000, há uma grande quantidade de livros
publicados de forma independente. Simultaneamente, houve a criação de
algumas iniciativas editoriais independentes, como Edições Toró,
organizada por Allan da Rosa. Mas é a partir de 2003 que autores como
Ferréz começam a publicar em editoras de grande porte e a serem
traduzidos e publicados em vários países, sem dúvida devido à atenção
que essa produção começa a ter na mídia. Duas importantes iniciativas,
ambas iniciadas em 2007, são a coleção Literatura Periférica da Global
Editora, com oito livros publicados até agora, e a coleção Tramas
Urbanas da Aeroplano Editora (da qual
Vozes dos Porões faz
parte), com curadoria de Heloísa Buarque de Hollanda, com uns 30 livros
publicados sobre a produção cultural periférica. Além disso, é
importante destacar a notável e crescente presença dos escritores
periféricos em feiras de livros, congressos, encontros acadêmicos e
outros eventos nacionais e internacionais, dialogando cada vez mais com a
produção cultural “canônica”.
Inspirado pela literatura marginal brasileira, você
participou de um coletivo editorial no México, onde iniciou a coleção
Imarginalia, dedicada a autores oriundos de favelas e periferias
urbanas. Quais são as diferenças e semelhanças entre a literatura
marginal mexicana e a brasileira?
A literatura que se faz nas periferias e “barrios bravos”, por
exemplo, da cidade do México, tem muito a ver com a literatura
periférica brasileira: a preocupação com as temáticas da marginalidade,
da violência, da pobreza, da desigualdade; o uso de uma linguagem
carregada da oralidade das ruas; a preocupação com a memória, com a
territorialidade e com as formas de sociabilidade locais; a vinculação
com ações políticas e sociais para além da criação literária. Ao mesmo
tempo, a literatura periférica no Brasil destaca-se pela vitalidade,
pela vinculação muito ativa entre escritores de periferias de todo o
país, com a consciência de serem parte de um fenômeno comum, pela
participação de autores muito jovens, pelo pertencimento a um movimento
cultural mais amplo que inclui muitas outras expressões culturais além
da literária, e pela visibilidade do fenômeno tanto na mídia quanto no
mercado e até mesmo na academia.
Quals são as relações que você estabelece entre o Exército Zapatista de Liberação Nacional e a literatura periférica?
O EZLN no México é um movimento revolucionário cuja principal arma de
luta é a palavra e cuja principal reivindicação é a autonomia. Nos
últimos 20 anos, eles têm criado um sistema de governo, justiça,
educação, saúde, produção e comércio autônomo, fora da lógica do capital
e sem um centavo do governo. Por outro lado, um dos eixos mais
interessantes do movimento da literatura periférica são as ações
políticas de criação de espaços de autonomia nas periferias. A
experiência de luta antissistêmica e de construção de um mundo
alternativo pelos zapatistas pode alimentar o próprio debate interno do
movimento cultural periférico, no contexto das suas próprias buscas,
conquistas e contradições.
Colaboração de Renata Saavedra